Refletindo sobre a complexidade do conceito de normalidade
13 de outubro de 2020
No dia 10 de Outubro se comemorou o dia Mundial de Saúde Mental, por isto vale uma reflexão sobre o que é normalidade, para que não se estigmatize e nem se simplifique a questão da saúde mental.
O conceito de normalidade é bastante complexo, ambíguo e subjetivo. Para Freud, em seu livro Psicopatologia da Vida Cotidiana, a linha fronteiriça entre os estados nervosos, não distingue um estado do outro, pois segundo ele todos nos somos em maior ou menor grau “nervosos”, o que para ele determinaria ações defeituosas, ou seja, manifestações mórbidas se caracterizariam pelo número, intensidade e erupção temporal destas manifestações. Mas ainda segundo Freud, é possível que esta transição entre saúde e doença nunca seja descoberta.
Atualmente há pelo menos 9 conceitos de normalidade, que traduzem a dificuldade de diagnóstico e de tratamento, são eles:
1. Normalidade como ausência de doença: o primeiro critério que se utiliza é de saúde como “ausência de sintomas, de sinais ou de doenças”. Neste sentido, normal, e o indivíduo não portador de um transtorno mental definido. Este critério se apresenta falho e precário, pois, baseia-se em uma “definição negativa”, ou seja, a normalidade e definida por aquilo que ela não é, pelo que lhe falta.
2. Normalidade ideal: Neste caso, a normalidade se configura como uma “utopia”, onde se constitui e referencia-se pela sociedade, uma norma social ideal, que determina o que e “sadio e mais evoluído.” Este critério utilizado, e baseado em critérios sócio-culturais e ideológicos arbitrários e a normalidade e medida na adaptação do indivíduo às normas morais e políticas de determinada sociedade.
3. Normalidade estatística: a normalidade estatística identifica norma e frequência e se aplica especialmente a fenômenos quantitativos, com determinada distribuição estatística na população geral – como peso, altura, tensão arterial, horas de sono etc. O normal passa a ser aquilo que se configura com maior frequência. Os indivíduos que se situam estatisticamente fora da curva de normalidade passam a ser considerados anormais ou doentes. Este é um critério muitas vezes falho em saúde geral e mental, pois nem tudo o que é frequente é necessariamente saudável, assim como nem tudo o que é raro ou infrequente é patológico.
4. Normalidade com bem-estar: Em 1958, a OMS – Organização Mundial de Saúde – definiu a saúde como o “completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente como ausência de doença”. Pela sua amplitude, imprecisão e dificuldade de se definir o que seja bem estar, este conceito tem sido criticado, Além disso, o completo bem-estar físico, mental e social é tão utópico, que poucas pessoas se encaixariam na categoria “saudáveis”.
5. Normalidade funcional: este conceito se baseia nos aspectos funcionais e não quantitativos. Assim, um fenômeno é considerado como patológico quando é disfuncional, ou seja quando provoca sofrimento para o próprio indivíduo ou para o grupo social. Este conceito relativista o conceito de normalidade.
6. Normalidade como processo: nesse caso, os aspectos dinâmicos do desenvolvimento psicossocial, das desestruturações e reestruturações pelas quais o individuo passa ao longo do tempo, de crises, de mudanças próprias a determinadas faixas etárias, são consideradas. Este conceito é útil para se entender e tratar as disfunções que podem ocorrer na criança, no adolescente e no idoso.
7. Normalidade subjetiva: neste conceito se da ênfase à percepção subjetiva do próprio indivíduo em relação ao seu estado de saúde, à suas próprias vivências subjetivas. Este critério também e falho, pois muitos indivíduos que se sentem bem, saudáveis e felizes, podem apresentar, de fato, um transtorno mental grave.
8. Normalidade como liberdade: alguns autores de orientação fenomenológica e existencial conceituam doença mental como perda da liberdade existencial, assim, a saúde mental permitiria ao individuo transitar, com graus distintos de liberdade, sobre o mundo e sobre o próprio destino. Neste sentido, a doença mental é vista como constrangimento do ser, ou seja, como cerceamento das possibilidades existenciais.
9. Normalidade operacional: é um critério, com finalidades pragmáticas explícitas. A priori define-se o que é normal e patológico e depois busca-se trabalhar operacionalmente com tais conceitos, aceitando-se as conseqüências de tal redução prévia. Pela ausência de conceitos, este e um critério assumidamente arbitrário
A partir destes 09 conceitos, pode-se concluir que os critérios de normalidade e de doença em psicopatologia variam em função dos fenômenos específicos e de acordo com as opções filosóficas e conceituais do profissional responsável.
Porém um aspecto bastante considerável que influenciou e influencia o diagnóstico e tratamento da doença mental, é a dimensão histórica e social do contexto, onde se insere o indivíduo.
Desta forma, o processo saúde/doença deve ser entendido como dinâmico e ativo, derivado, de vários fatores que se produzem historicamente e que contemplam a totalidade de relações vividas pelo indivíduo, ou seja, a díade saúde-doença e saúde mental, pode ser interpretada de diversas formas, de acordo com o seu tempo, período histórico, contexto, cultura, sociedade e crenças do profissional.
Como exemplo, podemos citar os dois casos extremos descritos no livro A louca e o santo
de Catherine Clément & Sudhir Kakar , onde os autores trazem a história de dois personagens, uma católica francesa e um guru indiano, que viveram na mesma época, em sociedades e culturas distintas e apresentavam sintomas semelhantes: visões alucinatórias, paradas respiratórias, sensações de êxtases, dentre outros, mas que tiveram destinos totalmente distintos. Madeleine, a francesa, foi considerada louca e passou vários anos de sua vida internada em um manicômio, enquanto Ramakrishna tornou-se um reconhecido líder místico e espiritual da Índia.
Assim, pode-se dizer que os fatores socioculturais e históricos foram determinantes para o diagnóstico e condução do tratamento, já que ambos nasceram e viveram na mesma época (Séc. XIX), porém em sociedades com culturas completamente diferentes.
O cenário da Europa, especificamente da Franca, se baseava no racionalismo e o cenário político já apontava para o capitalismo, onde as explicações racionais sobre a doença mental, com sua descrição e categorização de doenças, ganham expressão neste tipo de sociedade. Indivíduos que não se encaixavam nas categorias ditas “normais” eram excluídos da sociedade, por meio da hospitalização compulsória da pessoa. Situação provavelmente ocorrida com Madeleine.
Já Râmakrishna considerado um dos últimos grandes santos hindus, nasceu e cresceu numa sociedade, cujas bases se estruturam sobre a crença em Deuses/Divindades e o objetivo da pessoa deve ser o de encontrar a consciência de Deus, que deve ser escolhido por cada pessoa. Rituais de devoção aos Deuses e Divindades fazem parte do cotidiano. Desta forma, as visões alucinatórias de Râmakrishna eram tidas como alcance do objetivo de todo o povo hindu. Não há duvidas de que este cenário deixou uma grande herança de ensinamentos.
Concluindo, a percepção do que é normalidade, do diagnóstico e do tratamento são consequência do momento histórico cultural e das crenças das sociedades envolvidas, portanto há que se ter o cuidado necessário nas avaliações e interpretações do que está fora da normalidade e de suas possibilidades de tratamento.